Recontando Machado

30/06/2009 às 20:03 | Publicado em Uncategorized | 1 Comentário

 

 Machado

                        Creio ter sido Jorge Luis Borges quem disse que todos os livros já foram escritos, de modo que restaria aos novos autores reescrevê-los a seu modo ou misturá-los uns e outros, remontando-os ou recriando sobre o que já existe.

                        Se a frase não for dele, certamente concordaria com ela, pois ninguém mais do que Borges foi capaz de estabelecer esse permanente diálogo com os outros escritores de sua predileção, especialmente os clássicos. A partir desse universo literário, reportou-se a obras e autores inexistentes (ou apenas ainda não existentes), descreveu lugares e seres fantásticos, e na História Natural da Infâmia, seu primeiro livro de contos, chegou até mesmo a engendrar vidas imaginárias para figuras escabrosas como Hitler e Stálin.

                        Julio Cortazar, com não menos talento,  fez algo semelhante, em suas Histórias de cronópios e de famas, e no seu extraordinário Bestiário.

                        Annibal Augusto Gama, em um delicioso ensaio, O livro, um palimpsesto, anota que um livro são muitos livros. “No seu texto assinado e autenticado pelo seu autor, podem ser descobertos textos de outros autores, ideias, metáforas, personagens, intrigas, paisagens que vieram de séculos atrás, e que se acham noutros livros”. E acrescenta: “Aquele que pretende ser absolutamente original e único, ao escrever um livro, ou é um tolo, ou um pretensioso, um ignorante. Para começo de conversa, ele veio ao mundo da mãe que o gerou, e com a ajuda de outro. Imediatamente, aqui encontrou amparo e ensinamentos de uma sociedade preexistente. Nunca esteve absolutamente só, mas se viu cercado de gente, e tudo, ou quase tudo lhe foi transmitido. Esse relacionamento, esse jogo de influências, são inarredáveis. E ocorre ainda que todos os assuntos já foram trabalhados, ou repetidos muitas vezes, sem se esquecer que para a ficção existem trinta ou quarenta situação fundamentais, que se submetem apenas a algumas variações” (Os Diamantes de Ophir, Funpec Editora).

                        Os escritores ─ e também aqueles que os leem e tiram das obras suas próprias interpretações ─ formam uma irmandade de ilusionistas e intrujões, que se aplicam mutua e consensualmente empulhações e contos do vigário, sem risco de sofrerem qualquer tipo de sanção ou retaliação, uma vez que, como se costuma dizer, a leitura (e a literatura em si) é um vício impune.

                        O livro Recontando Machado, organizado por Luiz Antonio Aguiar (Editora Record) propõe-se a isso, juntando um grupo de escritores contemporâneos (Alberto Mussa, Cíntia Moscovich, Claudia Lage, Cristovão Tezza, Heloisa Seixas, Leticia Wierzchowski, Marcelino Freire, Maria Sabino, Miguel Sanches Neto, Nilza Rezende, Rafael Cardoso, Tatiana Salem Levy) para que dialogassem com algumas das obras-primas de Machado de Assis, recriando com total liberdade contos do velho Bruxo.

                        O desafio é grande e até mesmo temerário, mas o resultado em geral me pareceu muito bom, a demonstrar a atualidade ou, melhor dizendo, a perpetuidade da obra machadiana.

                        Agradaram-me especialmente os trabalhos de Alberto Mussa (A Leitura Secreta), baseado nos contos A Cartomante e A causa secreta; de Letícia Wierzchowski (D. Inácia na Casa Verde), retrabalhando Missa do galo e O Alienista, Cristóvão Tezza (O adotado), extraído de O enfermeiro, e Mario Sabino (Um chapéu ao espelho), composto a partir de O Espelho e Capítulo dos chapéus.

                        Alberto Mussa narra a empreitada de um grupo de escritores empenhados na elaboração de uma fabulosa Enciclopédia de Machado de Assis, projeto que se inviabiliza tantas são as leituras possíveis a cada verbete.

                        Letícia Wierzchowski, de forma engenhosa e sutil, explora as ambigüidades de Missa do galo e da misteriosa Conceição, para levar o desfecho ou o esclarecimento (possível) da história pela velha mãe de Conceição, D. Inácia, internada nada mais, nada menos do que na Casa Verde do Dr. Simão Bacamarte.

                        Mas o melhor de tudo é que, depois de cada recriação, seguem-se os contos originais que lhe serviram de ponto de partida, e é sempre um deleite e assombro a releitura de Machado de Assis.

Recontando Machado 2

 

 

 

 

 

 

 

A morte e a morte de Michael Jackson

26/06/2009 às 19:35 | Publicado em Uncategorized | 7 Comentários

 

“No meio da confusão ouviu-se Quincas dizer:

Me enterro como entender

na hora que resolver.

Podem guardar seu caixão

Pra melhor ocasião.

Não vou deixar me prender

Em cova rasa no chão.’

E foi impossível saber.”

(A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, Jorge Amado)

 

 

                        A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, novela publicada pela primeira vez em 1958, na ótima e saudosa revista Senhor, é tida como uma obra atípica de Jorge Amado, que mistura sonho e realidade, loucura e razão, no melhor estilo do que se convencionou chamar de Realismo Mágico.

                Quincas        Narra as duas vidas de Joaquim Soares da Cunha, funcionário público e pai de família exemplar até se aposentar. A partir de então, cai na malandragem, no alcoolismo, na jogatina e na bandalha, deixando a família para conviver com prostitutas, bêbados, jogadores e meliantes da ralé, entre os quais passa a ser conhecido como Quincas Berro D’Água.

A narrativa tem como foco a morte de Quincas no quartinho imundo em que morou durante sua vida boêmia. Em retrospectiva, desenrola-se a sua primeira existência, ao lado da família, e a segunda vida, no meio dos vagabundos. Arrebatado por estes para um derradeiro passeio pelos bordéis e botecos, o corpo acaba embarcado em um saveiro, cheio de bebida e mulheres, e sobrevindo uma tempestade, o defunto se põe de pé e “no meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira. Penetrava o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria vontade.”

                        Há quem sustente que o livro seria baseado no Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, razão pela qual teria sido desprezado por Jorge Amado mais tarde, como também rejeitou os inúmeros escritos, alguns reunidos no livro Hora da Guerra, em que rasgou elogios patéticos até ao bigode de Stálin.

                        Mudar de opinião ou rever o que se pensava não desmerece ninguém, muito pelo contrário, demonstra um espírito aberto e corajoso. Mas se Jorge Amado tinha motivos de sobra para renegar sua militância stalinista, não os teria para rechaçar A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, obra à altura de suas melhores criações.

                        A morte dupla, ou tripla, de Quincas, a sua vida extravagante e lendária, parece-me que se imbricam de modo impressionante com a trajetória de Michael Jackson, o Rei do Pop.

                        Talento precoce, Michael Jackson foi um extraordinário cantor e dançarino (admirado por nada mais nada menos do que Fred Astaire), além de bom compositor. Criou um novo padrão audiovisual, transformando os antigos e chatos promos em clipes que são verdadeiros curtas-metragens, convidando para fazê-los diretores de cinema da envergadura de Martin Scorcese (Bad) e John Landis (Thriller), tendo ainda trabalhado com Sidney Lumet (O Mágico Inesquecível, fracassada tentativa de adaptação de O Mágico de Oz) e Francis Ford Coppola (Captain EO), sem dizer da longa e fecunda parceria musical com o grande Quincy Jones.

                        Mas depois do seu estrondoso sucesso nos anos 80, começou a morrer, ou a se matar, transfigurando-se como em Thriller, não em um mostro, mas sim num pálido fantasma de si mesmo.

                        Meteu-se em mil escândalos, perdeu todo o dinheiro que ganhara e a sua Neverland, rompeu com os antigos parceiros, empanturrou-se de remédios, submeteu-se a inúmeros tratamentos e terapias malucas, incontáveis cirurgias.

                        A sua morte ontem foi apenas a última, depois de muitas outras (e continuará a morrer vários dias ainda  nos jornais, nas  revistas e na televisão), mas como Quincas Berro D’Água permanecerá para sempre no imaginário popular.

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As estreias da estrela

21/06/2009 às 19:37 | Publicado em Uncategorized | 7 Comentários

 

 

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Para a Bell e o seu De Assalto

 

 

                        Ela estreou na vida um ano e dez meses depois da irmã.

                        Ela, um sol radiante, e a irmã, uma lua insinuante, formavam uma duplinha fascinante.

                        Ela audaz e até imprudente, a irmã capaz e sempre previdente.

                        Quando a irmã entrou na escolinha de balé, que ela ainda não tinha idade para cursar, vestia um colant azul, parecido com o uniforme da escola, e se postava na porta da sala de aula, imitando os passos e posições, até que convenceu a diretora a abrir uma exceção e admiti-la como aluna. Na apresentação de final de ano da escola, ela estreou como bailarina no Teatro Municipal, a menorzinha de todas, representando o número 2, que, aliás, era a sua idade.

                        Pertencem à história familiar as “coberturas” que ambas, com menos de dez anos, faziam das festas de fim de ano, com a velha e pesada Super 8 do avô paterno. A irmã filmando e narrando em off, ela atuando como repórter, entrevistando e gozando os avós, pais, tios e primos.

                        As duas foram ótimas alunas até o término do primeiro grau. A irmã continuou a ser depois, passou no primeiro vestibular e foi cursar Direito em São Paulo, formando-se com louvor.

                        Ela deu muito trabalho na adolescência, vivia a mil, pouco se interessava pelas aulas, limitando-se a tirar as notas mínimas para passar de ano no colegial. Guiava escondido, fumava escondido, namorava escondido. No último ano, pendurada numa recuperação de matemática, foi a São Paulo visitar a irmã, conheceu a FAAP ao assistir a uma peça no teatro de lá, e disse categórica:

                        Vou fazer faculdade aqui!

                        Pouco depois prestou o vestibular, com apenas 17 vagas para o curso de Relações Públicas que pretendia.

                        Só mesmo para ver como é, não tem a mínima chance, pensavam os pais.

                        Passou, estreou na faculdade que queria e foi uma das mais brilhantes alunas durante todo o curso.

                        Já aprovada no vestibular, fez o exame de recuperação no colegial, precisando de 9,0. É muito, não vai dar, pensamos. Tirou 9,5.

                        Hoje, é uma profissional dedicadíssima e de excepcional talento. Fez pós-graduação. Ampliou seu campo de trabalho, enveredou para o jornalismo e a televisão. Tornou-se roteirista e diretora de comerciais e programas, editora de jornal. Viajou pelo mundo afora.

                        Por isso, quando me disse, alguns dias depois de ter sofrido um assalto na pracinha próxima de casa, na qual brincava quando criança, que tinha escrito um roteiro para fazer um curta-metragem sobre o episódio e outros tipos de assaltos da vida, não duvidei um instante sequer.

                        Nesta segunda-feira, dia 22, estreia o seu curta-metragem De Assalto no Cine Clube Cauim (o cinema da sua infância, quando ainda se chamava Cine Bristol), a partir das 19 horas com exibição também do making of e apresentação ao vivo das músicas do filme, além de outras atrações.

                        Todos estão convidados.

                        Os amigos, os parceiros da realização, os pais, a irmã mais velha e a irmã mais nova (outra estrelinha que veio depois iluminar o nosso céu) estarão presentes a mais essa estreia dela, e às muitas outras que por certo ainda virão, para aplaudi-la de pé, com o coração na mão.

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Lá e cá

20/06/2009 às 14:50 | Publicado em Uncategorized | 2 Comentários

 

 

                        A jornalista Carolina Nogueira, que mora em Paris há dois anos, comenta no Blog do Noblat sobre os rigores do vestibular francês, o baccalauréat ou apenas bac, como é chamado por lá.

                        Anota que “Quem já passou pela experiência de um vestibular sabe o que significa a pressão. Mas por aqui, acreditem, é pior. O nível acadêmico da prova não é coisa para amadores. A primeira prova, obrigatória para todos os alunos, é de filosofia. matemática, francês, informática, literatura e metodologia científica são assuntos mais ou menos comuns a todas as carreiras entre as quais o aluno pode optar. Algumas provas, mais específicas, compreendem noções de engenharia, economia, direito, psicopatologias humanas – isso tudo, bem entendido, antes de entrar na universidade. Claro que o ensino secundário daqui é – mais em umas escolas, menos em outras – compatível com a exigência da prova. Mas a cobrança, a pressão e o stress também acompanham o mesmo nível. O fracasso no bac significa, na maior parte dos casos, repetir o último ano do secundário para ter direito a refazer a prova. O que costuma representar, na prática, a desistência do ensino superior.”

                        Uma das mazelas, entre muitas, que nos foram legadas pela ditadura militar é a ruína do ensino público brasileiro, que antes era de muito boa qualidade. Não sou adepto das teorias conspiratórias, mas há quem diga de modo bastante verossímil que o propósito da ditadura era esse mesmo, já que não lhe interessava professores e estudantes intelectualmente preparados e participativos, capazes de se contrapor aos abusos e desmandos, como ocorreu nos primeiros anos do regime autoritário.

                        Perdoem-me a conclusão acaciana (que os nossos Comendadores Acácio não veem), mas sem investimento maciço na educação, ― como o fizeram e fazem todos os países que deram o grande e definitivo salto para o desenvolvimento ― continuaremos a patinar entre os países do terceiro mundo, por mais que os tecnocratas e economistas de plantão nos apresentem suas estatísticas e previsões otimistas.

                        Com o ensino público deteriorado e as escolas particulares, na sua grande maioria, não passando de arapucas comerciais, em que o lucro dos mantenedores figura em primeiríssimo plano, o resultado pode ser medido por algumas das graves considerações sobre o desmatamento da Amazônia feitas pelos alunos que prestaram cá  o Enem de 2008:

“O problema da amazônia tem uma percussão mundial. Várias Ongs já se estalaram na floresta.”

“A floresta tá ali paradinha no lugar dela e vem o homem e créu.”

“Tem que destruir os destruidores por que o destruimento salva a floresta.”

“O grande excesso de desmatamento exagerado é a causa da devastação.”

“Espero que o desmatamento seja instinto.”

“A floresta está cheia de animais já extintos. Tem que parar de desmatar para que os animais que estão extintos possam se reproduzirem e aumentarem seu número respirando um ar mais limpo.”

“A emoção de poluentes atmosféricos aquece a floresta.”

“Os desmatadores cortam árvores naturais da natureza.”

“A amazônia tem valor ambiental ilastimável.”

“Explorar sem atingir árvores sedentárias.”

“A floresta amazônica não pode ser destruída por pessoas não autorizadas.”

“Uma vez que se paga uma punição xis, se ganha depois vários xises.”

“Os dismatamentos é a fonte de inlegalidade e distruição da froresta amazonia.”

“A amazônia está sendo devastada por pessoas que não tem senso de humor.”

“O que vamos deixar para nossos antecedentes?”

“Paremos e reflitemos.”

                        Assim, não apenas  a Amazônia,  mas o Brasil e  todos nós  estaremos irremediavelmente perdidos! Sem perder o “senso de humor”, “paremos e reflitemos”: os nossos “antecedentes” eram bem melhores.

 

 

Quem vê cara não vê coração (?)

17/06/2009 às 12:38 | Publicado em Uncategorized | 5 Comentários

 

 

                        Oscar Wilde, que além de um grande escritor era um frasista extraordinário, contrariando o dito popular do título acima, dizia que “só os tolos não julgam pela aparência”. Logo ele que teve a vida destruída pela audácia de não esconder sua homossexualidade numa Inglaterra vitoriana.

                        Nestes nossos tempos do politicamente correto, em que parecer politicamente correto é mais importante do que o ser de fato, a frase jocosa de Wilde seria fulminada pelos raios furibundos dos patrulheiros de plantão.

                        Em meados do século XIX, na onda da Escola Positivista, pretendeu-se dar foros de cientificidade a uma antropologia criminal baseada nas características anatômicas do individuo, como o formato do crânio e da cabeleira; fisiológicas, como tolerância à dor, ambidestreza; e psicológicas, como gosto por tatuagens, uso de gírias, frieza; para assim estabelecer o padrão do criminoso nato. O vulto mais conhecido dessa corrente ― felizmente varrida para o lixo da história ― é o italiano Cesare Lombroso, autor da célebre obra O homem delinqüente.

                        Muitos dos nossos jovens de hoje, com suas tatuagens e piercings, seu linguajar próprio, seu modo de vestir, estariam enquadrados inapelavelmente no tipo lombrosiano.

                        É óbvio que julgar apenas pela aparência é uma forma de preconceito, que deve ser evitada, como todos os preconceitos devem ser evitados. Todavia, não se pode negar que nosso juízo inicial sobre pessoas e coisas é sempre pela aparência, favorável ou desfavorável, de acordo com nossas idiossincrasias. Como nos sentimos atraídos por uma pessoa com que cruzamos na rua e poderá, ou não, se tornar um grande amor? Como nos aproximamos de alguém que virá a ser, ou não, um bom amigo? Como nos interessamos por uma roupa, um quadro, um livro, um objeto qualquer que vemos pela primeira vez?

                        Trata-se, é claro, de um juízo provisório, ao qual não devemos ficar limitados, tampouco dar o caráter de definitivo ou científico, mas que, de outra parte, muitas vezes se confirma.

                        Digo isso a pensar na aparência absolutamente ridícula de grandes déspotas, que causaram um mal imenso ao seu povo e à humanidade, e me indago como os seus contemporâneos, em especial aqueles que os alçaram ao poder, não vislumbraram isso?

                        Hitler, com seu bigodinho e seu gestual chapliniano, tão bem retratos no filme do próprio Charles Chaplin, O Grande Ditador; Mussolini, com suas caras e bocas patéticas; Stalin, com seu bigodão e postura hierática; o Comandante Fidel, não aquele jovem sonhador e barbudo que desceu de Sierra Maestra, mas o ditador carcomido, com a mesma barba e a mesma farda, que se tornou; o fanfarrão Chaves, com seu bolivarismo de fancaria, que se eterniza no comando supremo do seu país; o nosso Jânio Quadros, também chapliniano, e muitos outros mais.

                        Posso dizer que pelo menos uma vez em que me guiei pela aparência e pela minha intuição não me arrependi e estava certo: a figura de bom moço, os apelos messiânicos e moralistas, o olhar alucinado de Fernando Collor não me enganaram, logo pressenti que estava diante de um farsante ciclotímico, que acabou eleito Presidente da República (sem o meu voto), e deu no que deu.

                        Agora elle é senador por Alagoas e da base aliada do nosso grande líder atual, o Presidente Lula, a quem aniquilou valendo-se de sórdidas imputações no último debate global que antecedeu aquela malfadada eleição presidencial!

 

 

De volta para casa

13/06/2009 às 19:30 | Publicado em Uncategorized | 3 Comentários

 

 

                        Depois do metrô, de dois ônibus e uma boa caminhada, chegou finalmente em casa, na periferia distante, onde o cachorro o esperava na entrada, com o rabo abanando e os chinelos na boca.

                        Entrou e ouviu da cozinha a voz carinhosa da mulher dizendo para tomar banho depressa, que o jantar logo seria servido. Podia sentir no ar o aroma delicioso da comida.

                        Subiu as escadas do pequeno sobrado até o quarto, tirou a roupa e no banheiro anexo deixou que a água quente e reconfortante lhe escorresse pelo corpo, admirado com a força da ducha naquele dia.

                        Ainda gozava as delícias do banho, que resolveu prolongar, quando ouviu um vozerio e o barulho de passos apressados subindo a escada.

                        Os três tiros desfechados à queima roupa amargaram-lhe a boca, e ao cair levou consigo a cortina do boxe, na qual buscou apoio.

                        Como no filme de Hitchcock, os seus olhos baços viram o sangue misturando-se com a água e a mescla líquida ser sugada pelo ralo, num ruído rouco.

                        Só então lhe passou pela cabeça como um flash a lembrança de que morava num apartamento, não era casado e não tinha cachorro, que agora gemia e lhe lambia o rosto, enquanto a luz pouco a pouco se apagava.

 

 

Dose diária

12/06/2009 às 12:09 | Publicado em Uncategorized | 1 Comentário

 

                                   Vá tomar pílulas!

Aviso aos Navegantes

11/06/2009 às 12:59 | Publicado em Uncategorized | 1 Comentário

 

                        O programa radiofônico A Voz do Brasil, que o implacável humor popular cognominou de O Fala Sozinho, existe desde os idos 1938, quando foi criado pelo então Departamento Nacional de Propaganda (DNP), com o nome de A Hora do Brasil e o alegado propósito de divulgar os principais acontecimentos da vida nacional.

                        Na realidade o verdadeiro objetivo sempre foi o de implantar um sistema de controle da informação, conforme ficou evidente quando o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) se tornou o responsável pelo programa e incluiu, além da informativa, as finalidades cultural e cívica, visando bem educar o povo brasileiro.

                        A História nos conta a que se prestou o tenebroso DIP no período não menos terrível do Estado Novo comandado pelo ditador Vargas (e existe alguma ditadura que não seja horripilante?), que após ser deposto retomou o poder consagrado pelas urnas, e se tornou heroi nacional para muitos com o seu suicídio e a sua duvidosa carta-testamento.

                        Mas isso é outra história.

                        A história que quero contar aqui é outra, que me foi contada antes e passo adiante agora.

                        Consta que havia (não sei se ainda existe, já que sou um daqueles que contribuem para que o programa continue a falar sozinho) na velha A Hora do Brasil uma seção denominada Aviso aos Navegantes, que informava os intrépidos navegadores sobre a tábua de marés, ventos, condições climáticas e coisas do gênero. Mas em alguns dias, após o sonoro anúncio do tão esperado Aviso aos Navegantes, o locutor proclamava solenemente:

                        Não há aviso aos navegantes!

                        Pois sou eu que tenho hoje um aviso aos navegantes deste tempestuoso blog.

                        Resolvi criar uma nova página, dedicada a brevidades, comentários ligeiros e informações rápidas, que achei de denominar Pílulas.

                        Se você ficou curioso(a) acerca da explicação do título e do conteúdo da página, entre nela agora.

 

 

O Príncipe

09/06/2009 às 12:37 | Publicado em Uncategorized | 1 Comentário

 

 

                        O Príncipe, de Maquiavel, escrito há quase cinco séculos, ainda permanece atual e polêmico.

                        Trata-se daquele tipo de livro que parece haver transcendido as intenções do autor, que pretendendo apenas induzir um príncipe de alta linhagem a pôr-se à frente dos destinos da Itália, acabou por se tornar um verdadeiro manual para todo tipo de governante, fazendo com que a obra se tornasse universal.

                        Citado por muitos, mas lido de fato por poucos, Maquiavel tem conhecido tantas interpretações divergentes quanto são aqueles que o analisam ou o tomam para si. Basta ver que, em pleno século XX, enquanto Mussolini transformava Maquiavel em precursor do fascismo, o marxista Gramsci assimilava ao príncipe ideal renascentista o partido do proletariado, como instrumento contemporâneo de sua vontade e ação coletivas.

                        É também O Príncipe que de algum modo inspira e dá nome a um dos melhores filmes brasileiros dos últimos tempos (que voltei a assistir domingo último, num canal a cabo), do grande cineasta Ugo Giorgetti, cuja trajetória singular e expressiva ainda esta a merecer o devido reconhecimento.

                        Não me agrada muito a denominação cineasta, de uso corrente no Brasil para se referir aos diretores de cinema, mas reconheço que talvez ela expresse mais adequadamente a verdadeira odisseia que nossos diretores têm de enfrentar para fazer um filme, esfalfando-se em múltiplas atividades, além de dirigir.

                        Paulistano, descendente de italianos (daí talvez a sua atração pela obra de Niccolò Machiavelli), Ugo Giorgetti trabalhou em publicidade até chegar ao cinema e realizar filmes plenos de fina ironia e observação da vida cotidiana. São dele também, entre outros, Boleiros (rara incursão bem sucedida no cinema brasileiro no mundo do futebol), Sábado e Festa, estes dois mais antigos, mas igualmente ótimos. Trabalha sempre com um grupo de excelentes atores, com os quais deve ter afinidade, o que torna seus filmes mais autorais ainda.

                        O Príncipe, lançado em 2002, relata o retorno ao Brasil do intelectual Gustavo (Eduardo Tornaghi), que vive em Paris há mais de vinte anos, e o seu reencontro com o passado, velhos amigos que se tornaram arrivistas (Ewerton de Castro), um grande amor mal resolvido (Bruna Lombardi) e, sobretudo, com uma São Paulo que não mais existe, ruínas do que foi.

                        Gustavo retorna para dar apoio à mãe idosa, às voltas com o tratamento do único neto, sobrinho dele (Ricardo Blat), professor que se acha em surto psicótico e internado. Tudo isso impregna o filme de uma atmosfera outonal, de recordações, desencantos e despedidas, da sensação melancólica de que já não é possível recapturar o passado e os antigos sonhos.

             o príncipe 2           São para mim antológicas as cenas do jantar no velho Paddock (a pequena participação de Adriano Stuart como o maitre é impagável), em que Gustavo revê o amigo jornalista (Otávio Augusto), beberrão, amargo e sarcástico, preso a uma cadeira de rodas depois de sofrer um acidente. Findo o jantar, saem os dois pelas ruas das imediações, inteiramente degradadas, com seus lúgubres personagens noturnos, enquanto o paraplégico, empurrado por Gustavo, declama trechos da Divina Comédia, depois de passarem pela estátua de Dante Alighieri, na Praça Dom José Gaspar.o príncipe

 

 

 

 

 

                        A síntese perfeita de tudo está na última fala do protagonista, ao responder à madame que com ele embarca no voo de volta à Paris, e lhe indaga se ele viera ao Brasil a negócio ou prazer:

                        Como a senhora definiria um funeral?

 

A estrela aquece

07/06/2009 às 11:06 | Publicado em Uncategorized | 8 Comentários

 

 

Saudade do meu vô Tufy

 

                        Acho que hoje não é o meu dia de sorte. De manhã na escola, o professor Ivo, de Português, sorteou uns temas para redação. Eu fiquei por último e o que me sobrou foi este: “A estrela aquece”. Agora de tarde, enquanto a turma joga futebol no campinho, estou aqui sem saber o que escrever. Acho que não vou fazer a redação e ficar sem nota.

                        Qual o sentido desse título, “A estrela aquece”?

                        Meu pai que vive com o nariz enfiado nos livros, mas não gosta de me ajudar a fazer os deveres da escola, me disse para usar a cabeça, e que tem um livro de um tal de Marques Rebelo chamado “A estrela sobe”. E daí? Por sinal, estrela não sobe, ela já está lá em cima. O que sobe mesmo é pipa, papagaio, balão e avião. E de Marques ou Marquês, o único que eu conheço mesmo é o Marquês de Rabicó, do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

                        Procurei no dicionário e vi que, embora tenha um monte de outros significados, ou sentidos figurados, como diz o professor, estrela é aquilo mesmo que se vê no céu todas as noites, quando não está chovendo. Ou seja, estrela brilha, pisca, ilumina, mas aquecer…?

                        Espera aí! Se ela brilha é porque tem luz e calor. O sol não é uma estrela? E o sol esquenta pra valer. Será que é isso? Se for, a minha redação vai ficar muito besta.

                        O professor diz que, para fazer uma boa redação, devemos usar a imaginação, ser criativo, inventar, a partir de coisas que aconteceram com a gente.

                        Pensando nisso, lembrei de um carro importado que meu avô comprou (naquele tempo não havia carro nacional) e tinha uma baita estrela, cromada e muito linda, na frente do capô.

                        O carro também era muito legal, com bancos de couro, direção de madrepérola, rádio, buzina que tocava uma musiquinha e um motor que roncava macio e gostoso.

                        Só tinha um problema: o raio do motor esquentava e começava a soltar fumaça bem debaixo da estrela, que, muito mais do que aquecer, ardia e até queimava a mão se a gente encostava nela.

                        O meu avô ficava muito chateado com isso, ameaçava devolver o carro ao sujeito que tinha lhe vendido, ia de oficina em oficina, sem conseguir resolver o enguiço.

                        Era só andar uma distância ou pouco maior e lá vinha a fumaceira, a estrela embaçava e quase derretia de tanto aquecer. Era preciso abrir o capô, soltar com cuidado a tampa do radiador, colocar água e esperar o motor esfriar.

                        Até que um dia meu avô resolveu ir a uma cidade grande, um pouco longe, onde tinha uma oficina da marca do carro. Eu fui com ele e a viagem de ida foi um custo. Tinha de parar a toda hora, para esfriar o motor e a estrela. Mas valeu a pena. Os mecânicos descobriram um probleminha à toa no radiador e consertaram no mesmo dia.

                        Enquanto isso, meu avô e eu passeamos pela cidade, tomamos sorvete, comemos pipoca e até assistimos a um filme do Tarzan na matinê.

                        Na volta, com o carro tinindo, meu avô todo contente desligou o rádio, contou umas histórias de assombração, que ele jurava ter acontecido com ele e me de deixavam arrepiado, cantarolou umas músicas e uns tangos engraçados, e eu quase me rachei de tanto rir.

                        Depois disso, o carro ficou muitos anos ainda com meu avô, que sempre me levava para passear com ele. De vez em quando, me sentava no seu colo e me deixava comandar a direção, dizendo-me que eu seria um motorista melhor do que ele.

                        O motor nunca mais esquentou e a estrela do capô, lá na frente, nunca mais aqueceu. Ficava sempre reluzente e fria, como parecem ser as estrelas lá no céu, vistas daqui de baixo.

 

 

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