A morte e a morte de Michael Jackson

26/06/2009 às 19:35 | Publicado em Uncategorized | 7 Comentários

 

“No meio da confusão ouviu-se Quincas dizer:

Me enterro como entender

na hora que resolver.

Podem guardar seu caixão

Pra melhor ocasião.

Não vou deixar me prender

Em cova rasa no chão.’

E foi impossível saber.”

(A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, Jorge Amado)

 

 

                        A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, novela publicada pela primeira vez em 1958, na ótima e saudosa revista Senhor, é tida como uma obra atípica de Jorge Amado, que mistura sonho e realidade, loucura e razão, no melhor estilo do que se convencionou chamar de Realismo Mágico.

                Quincas        Narra as duas vidas de Joaquim Soares da Cunha, funcionário público e pai de família exemplar até se aposentar. A partir de então, cai na malandragem, no alcoolismo, na jogatina e na bandalha, deixando a família para conviver com prostitutas, bêbados, jogadores e meliantes da ralé, entre os quais passa a ser conhecido como Quincas Berro D’Água.

A narrativa tem como foco a morte de Quincas no quartinho imundo em que morou durante sua vida boêmia. Em retrospectiva, desenrola-se a sua primeira existência, ao lado da família, e a segunda vida, no meio dos vagabundos. Arrebatado por estes para um derradeiro passeio pelos bordéis e botecos, o corpo acaba embarcado em um saveiro, cheio de bebida e mulheres, e sobrevindo uma tempestade, o defunto se põe de pé e “no meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira. Penetrava o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria vontade.”

                        Há quem sustente que o livro seria baseado no Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, razão pela qual teria sido desprezado por Jorge Amado mais tarde, como também rejeitou os inúmeros escritos, alguns reunidos no livro Hora da Guerra, em que rasgou elogios patéticos até ao bigode de Stálin.

                        Mudar de opinião ou rever o que se pensava não desmerece ninguém, muito pelo contrário, demonstra um espírito aberto e corajoso. Mas se Jorge Amado tinha motivos de sobra para renegar sua militância stalinista, não os teria para rechaçar A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, obra à altura de suas melhores criações.

                        A morte dupla, ou tripla, de Quincas, a sua vida extravagante e lendária, parece-me que se imbricam de modo impressionante com a trajetória de Michael Jackson, o Rei do Pop.

                        Talento precoce, Michael Jackson foi um extraordinário cantor e dançarino (admirado por nada mais nada menos do que Fred Astaire), além de bom compositor. Criou um novo padrão audiovisual, transformando os antigos e chatos promos em clipes que são verdadeiros curtas-metragens, convidando para fazê-los diretores de cinema da envergadura de Martin Scorcese (Bad) e John Landis (Thriller), tendo ainda trabalhado com Sidney Lumet (O Mágico Inesquecível, fracassada tentativa de adaptação de O Mágico de Oz) e Francis Ford Coppola (Captain EO), sem dizer da longa e fecunda parceria musical com o grande Quincy Jones.

                        Mas depois do seu estrondoso sucesso nos anos 80, começou a morrer, ou a se matar, transfigurando-se como em Thriller, não em um mostro, mas sim num pálido fantasma de si mesmo.

                        Meteu-se em mil escândalos, perdeu todo o dinheiro que ganhara e a sua Neverland, rompeu com os antigos parceiros, empanturrou-se de remédios, submeteu-se a inúmeros tratamentos e terapias malucas, incontáveis cirurgias.

                        A sua morte ontem foi apenas a última, depois de muitas outras (e continuará a morrer vários dias ainda  nos jornais, nas  revistas e na televisão), mas como Quincas Berro D’Água permanecerá para sempre no imaginário popular.

Michael 2

7 Comentários »

RSS feed for comments on this post. TrackBack URI

  1. Talvez eu devesse até me abster de fazer este comentário, mas acho que o nosso astro merece uma homenagem. Parabenizo o meu Professor pela sensibilidade, respeito e carinho com que discorreu sobre o ídolo. O paralelo feito com o personagem de Jorge Amado é perfeito: após cumprir o que supõe seja o seu destino, a sua obrigação, resolve entregar-se a si mesmo. E só Deus sabe o que vai no interior de cada um… coisas muitas vezes não tão nobres quanto se poderia desejar. Como fã, ignorei todos os escândalos que estiveram presentes nesta que se tornou a última etapa da sua “vida”. Lendo diversas publicações a seu respeito, pude concluir que: 1) Michael não gostava de si mesmo (segundo afirmado por sua própria irmã, enquanto ele ainda estava “vivo” – pensa no quanto pode doer quando um membro de sua família, que se aproveitou da sua luz, sai disparando para a imprensa mundial algo que talvez nem ele mesmo soubesse; a “vergonha” diante de tal constatação); 2) submetia-se a cirurgias para distanciar-se cada vez mais do seu perfil original, para não ficar “parecido com o pai” (imagina a repulsa!); 3) lamentava a infância perdida, trocada pelas infindas sessões de treinamento da voz e coreografias.
    Enfim, o ídolo adorado por tantos (especialmente por mim) era um ser devastado, sem saber o que fazer de si mesmo, mais uma nau sem rumo nesse imenso oceano em que somos todos navegantes. Quando não se sabe o que fazer de si, até desconhecendo o que se é verdadeiramente, não importa qual seja a consequência dos seus atos. Ainda mais no caso dele, que vivia uma vida de “faz de conta” (que eu sou um ídolo, que sou uma pessoa, que tenho uma família, que sou pai, que não me importo com o quanto tudo isto me custa).
    Vejo sua morte com grande pesar, porque acompanhei a sua “descida da montanha”; sua fragilidade dos últimos tempos me assustava, mas espero que agora, longe dos holofotes, fama, dinheiro e adoração geral do público ele possa ter, finalmente, o que tanto ansiava: paz, especialmente consigo mesmo. Esperar que obtenha respostas para o porque disso tudo seria demais.

  2. Não é q eu tenho um pai moderninho? acho q sei de que puxei minha não caretice…Muito embora o Michael branco tivesse tantas coisas lamentáveis em sua vida, o Michael negro era mesmo genial. Vale tb o comentário da Bell, de que se houvesse uma hecatombe só sobraria o Michael e as baratas…beijo, Carol. Ps: estamos todos muito velhos mesmo.

  3. Talvez eu devesse me calar sobre o que senti e penso a respeito da perda desse memorável artista. Tive pena dele por morrer assim tão despretensiosamente. Mas acho que ele tinha tão pouco amor a si mesmo e à vida, que deve ser até bom poder ir pra um lugar (dizem…) mais feliz e tranquilo. Onde ele poderá ser negro ou branco sem traumas, ter o aspecto físico que lhe é devido sem tentativas mórbidas de transformação. Acho que ele era incrível dançando, cantando, compondo, criando em todas as suas nuances. Mas tristemente infeliz e vazio de respeito por si. Acho que nós perdemos um grande e verdadeiro artista, mas ele… passou a vida toda morrendo um pouco por vez em suas atitudes e tentativas de mutação.
    A bem da verdade lamentei mais pela morte, no mesmo dia, da atriz Fharra Fawcett (nem sei se assim se escreve, desculpe) que se não primou pelo brilhantismo, pelo menos foi uma mulher belíssima físicamente, que curtiu os dotes que lhe foram cedidos e se foi carcomida pela implacável doença, até preparando seus últimos dias.
    Perdoem-me os ardorosos fãs do MJ, que, repito, foi sensacional em seus dotes artísticos e, de coração, que ele esteja em paz, pelo menos agora.

    • Ruy Castro, na sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, escreveu sobre o que denominou, com propriedade, de “mortes paralelas”, aquelas que são suplantadas por outra morte mais espetaculosa ou de maior repercussão naquele momento. Foi o que ocorreu com Farrah Fawcett em relação a Michael Jackson. Pelo menos, como disse ele, fomos poupados de ver a sua imagem de paciente de cancer terminal e podermos guardar a daquela pantera linda, verdadeira força da natureza, toda cabelos, olhos e dentes que iluminavam a presença de uma das mais belas mulheres do últimos tempos

      • Verdade; a morte de Farrah Fawcett ficou meio “obscurecida” pela morte de Michael Jackson. Mas a maravilhosa pantera não precisou brilhar na morte, já que teve uma vida tão luminosa… e foi muito amada; casou-se duas vezes com o mesmo homem (isto é que é amor; no último casamento ela já não era a grande estrela que foi, mas continuava sendo amada mesmo assim).
        Quanto ao Michael… parece que não teve muita escolha, até que, finalmente conseguiu morrer.

  4. Tio.
    Somente você para conseguir traçar um paralelo tão tangível entre a obra de Jorge Amado e a trajetoria de Michael Jackson.
    Confesso que senti a morte do ídolo. Acho que apesar de todos os erros e bizarrices ele teve uma vida bem sofrida.
    Ao notar em Michael Jackson o maior talento da família, seu pai – figura austera – lançou muito peso e responsabilidade sobre suas frágeis costas.
    Foi um artista brilhante, de um talento quase insuperável; mais um gênio que se vai.
    Seu “passado negro” foi brilhante e memorável; sua “vida branca” foi cheia de pedras no caminho.

    • Gostei, Guilherme!
      “Passado negro” e “vida branca”!
      E pensar que, “por dentro”, era apenas uma alma a mais, como a nossa…


Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.
Entries e comentários feeds.